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Uma carta ao Hospital de Santa Marta (Aos hospitais).

por Maria Joana Almeida, em 02.02.21

mae.jpg

 

Esta carta tardou. Mas é provavelmente a carta mais obrigatória que já escrevi.

 

Aqui não sei bem como começar. Há sensações às quais não sei dar um nome, um único nome, ou um único texto.

De maio a dezembro conheci três hospitais. Um trio que cercou a minha vida, a vida da minha mãe, a vida de uma família e amigos que não podendo estar presentes conheciam os seus cantos quase graficamente, telefonicamente.

Em São José a minha mãe ficou durante dois dias numa fila de camas à espera de exames e diagnósticos. Em Santa Marta a minha mãe ficou internada e soube o diagnóstico. Em Santa Marta a nossa vida parou.

Nos Capuchos teve as consultas de quimioterapia, poucas. Em Santa Marta a minha mãe partiu, minutos depois de eu sair. Mas segurei-lhe a mão, até ao fim, como havia prometido para mim mesma, porque nunca haveria outra hipótese.

 

Há uma espécie de construção que nasce depois dos cacos espalhados, uma espécie de normalidade paralela, inevitável, vital para seguir em frente, uma assunção de trocar as voltas à morte.

 

A minha mãe passou a maior parte do seu tempo doente no Hospital de Santa Marta, numa altura absolutamente ingrata, dentro da maior ingratidão da vida. Era difícil visitá-la, era difícil ficar o tempo que desejaríamos. Mas este hospital é dotado de uma humanidade inspiradora.

Lembro-me da minha mãe dizer como é que era possível as pessoas criticarem o Sistema Nacional de Saúde. Existia (existe) um carinho, um cuidado, um empenho, um entusiasmo (possível) permanente, constante.  

Há um segredo que desvendo aqui: Houve uma enfermeira muito especial, uma enfermeira que se tornou amiga da minha mãe, que se tornou minha amiga, que conseguiu um impossível. Uma enfermeira e uma médica que, num cenário de proibições, num momento de dúvida se a minha mãe sairia ou não daquele hospital, acederam a que as netas pudessem visitar a avó. Esta ato de humanidade permanecerá intacto na memória para sempre.

 

Em Santa Marta houve um médico que eu não conhecia que se sentou horas comigo para explicar tudo, para definir tudo. O médico que me disse que a minha mãe era muito querida por todos, a quem recorri quando a minha mãe foi para as urgências de São José. Um médico que me ligou quando saiu do hospital, fora do seu expediente. Um médico que a abraçou. As auxiliares que paravam o trabalho para se despedir da minha mãe quando saia. Uma médica que, no momento em que já não havia nada a fazer se emocionou comigo e partilhou também a história da sua mãe. A enfermeira que no final do seu turno, pelas 00h, naquela que viria a ser a última noite, não me deixou sair sozinha. Levou-me no seu carro para casa. Eu não conhecia estas pessoas. Estas pessoas não conheciam a minha mãe. Estas pessoas trataram a minha mãe com uma dedicação que vai para além do protocolo, que vai para além da função, da simpatia. Foram a nossa família de apoio direto durante meses.

Não há espaço mental regular que consiga encaixar a resiliência, o empenho, a vontade de estar presente, holisticamente, de médicos e enfermeiros. Quer num cenário quase de guerra nos claustros de São José, um espaço graficamente pesado, desolador, mas que puxa pela vida, quer nos canais de comunicação que rapidamente se abriam em Santa Marta, houve pequenos milagres que aconteceram.

 

A minha filha de 3 anos disse-me que tinha saudades da avó “Fama”. Pediu-me para ir ao céu buscá-la.

O Hospital de Santa Marta, todo o corpo humano deste Hospital, foi muitas vezes ao céu buscar a minha mãe. Aquele era o céu no meio dos hospitais.

 

Obrigada. Obrigada à equipa deste hospital.

 

Uso poucas vezes a palavra gratidão por ser muitas vezes um lugar comum. Em nenhum outro momento ela encontra o sítio certo e ecoa como aqui.

 

 

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publicado às 20:21


22 comentários

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De Miguel Angelo Teixeira a 02.02.2021 às 22:21

Antes de mais os meus sinceros pêsames pela partida de sua mãe. A seguir agradeço lhe essa carta, um texto pertinente sobre a capacidade de olharmos em volta nos tempos que correm e conseguir enxergar a humanidade, a forma como no meio das adversidades ainda somos capazes de ser humanos e de ir buscar forças onde elas parecem não existir. O meu obrigado a todos esses heróis incógnitos que lutam por nós.
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De Anónimo a 02.02.2021 às 22:57

Grande abraço...estou por aqui quando quiseres
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De Anónimo a 04.02.2021 às 14:18

Joana estou emocionada com a tua carta, como te contei há 15 anos o meu pai também esteve em Santa Marta e a excelência do Hospital mantém -se desde então. Além de todo o pessoal clínico e auxiliar, foi igualmente de extrema dedicação uma das minhas colegas Assistente Social que permanecerá sempre no meu coração. Um Hospital num edifício velho mas com profissionais extraordinários. A todos a minha gratidão para sempre. Maria José
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De Anónimo a 06.02.2021 às 17:15

Não a conheço e desde já os meus sentimentos pela sua mãe. Adoro as suas palavras e também eu sou "cliente" do H. Santa Marta como transplantado. Faço minhas as suas palavras pois nunca tinha visto tanto carinho, amizade e profissionalismo em nenhum outro hospital como neste. Não digo que nos outros não exista mas aqui é diferente. Desde Cirurgiões, Médicos, Enfermeiros, Auxiliares, Fisioterapeutas, Ação Social e muitos outros nada a apontar e só posso dizer Muito Obrigado.
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De Anónimo a 06.02.2021 às 20:04

Como profissional deste centro hospital, obrigado pelas suas palavras!
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De Anónimo a 07.02.2021 às 00:34

Também eu e a minha família, por duas vezes, com dois familiares, tivemos esse carinho e esse profissionalismo. Ficamos gratos pela forma como os nossos familiares foram tratados tanto profissionalmente como humanamente. Também nós fomos humanamente apoiados nos momentos mais difíceis. Obrigada! Ficaremos sempre gratos e fico feliz por assim continuarem.
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De Anónimo a 03.03.2021 às 12:35

Estou sem palavras, com o meu coração muito apertado e os olhos cheios de lagrimas .
Estou grata a este Hospital, tal como a Joana. A minha MÃE faleceu a 20 de Maio de 2019 e graças ao seu medico, pode despedir da minha MÃE e dizer um ATÉ JÁ , e ganhei muita força para a DOR QUE SE SENTE.
Para toda a EQUIPA DESTE HOSPITAL O MEU MUITO OBRIGADA ( e infelizmente conheço muitos) e para a JOANA MUITA FORÇA E ESPERANÇA.
BJS
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De Anónimo a 03.03.2021 às 12:45

Em primeiro lugar os meus sentimentos pela morte da sua mãe.Subscrevo na integra as suas palavras. Já lá vão dezasseis anos que sou grato ao hospital de Santa Marta e a todos os seus profissionais. Cada vez que lá estive internado e já foram três sempre a mesma disponibilidade, a mesma simpatia o mesmo profissionalismo, sem esquecer claro, a médica que me assiste desde 2005.Bem hajam.
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De Anónimo a 03.03.2021 às 12:53

Não a conheço mas reconheço muitos traços de quem se dedica aos doentes (e às famílias) como refere. Não sou médica nem enfermeira, mas enquanto utente do SNS também já vi muito do que refere. Apraz-me verificar que ainda há quem utilize as redes sociais para dizer bem, pois parece que só há por aí vinagre nos corações de muita gente...
Espero que esse reconhecimento a ajude a ultrapassar o desgosto e que alguns dos 'alvos' da sua gratidão possam ler a sua publicação, pois penso que essa será a mais merecida recompensa pelo amor e dedicação à profissão.
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De Anónimo a 03.03.2021 às 13:48

Os meus sentimentos...o meu filho mais novo só não nasceu no Hospital de Santa Marta mas foi transferido para lá com horas de vida...14 anos e uns meses depois posso dizer o mesmo que você diz no seu post (com a diferença que ele continua conosco 😍) são Profissionais com P grande e Humanos com H grande! 🤩 e é bom agradecer e elogiar, sabe bem a Eles e a nós também. Muita força para si...😪

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