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A minha visão sobre Educação. As várias visões sobre Educação e todas as suas (e nossas) variáveis.
No último texto correspondente à 1ºparte do tema intitulado “Dis(z)lexia? E digo outras coisas” que escrevi na passada semana, elaborei um breve enquadramento sobre perturbações ao nível da leitura e escrita com ênfase numa perturbação específica da leitura – Dislexia tentando diferenciar esta perturbação muito específica de outros comprometimentos ao nível da linguagem que também influenciam esta aprendizagem.
Terminei com uma questão que recupero como início desta segunda parte:
De que forma o conhecimento do percurso escolar (frequência no pré-escolar; dificuldades sentidas no 1ºciclo; métodos utilizados) de um aluno pode ajudar na identificação mais rigorosa de uma problemática relacionada com a leitura e escrita?
O conhecimento do percurso escolar de um aluno, nomeadamente conhecer o trabalho desenvolvido no pré-escolar; as dificuldades manifestadas; como respondeu ao trabalho de pré competências de leitura a escrita e qual o método utilizado no 1ºciclo, permite-nos recolher dados importantes para melhor compreender perturbações associadas à fluência leitora e tipo de erros manifestados no processo de escrita por alguns alunos.
Luis Barbeiro, no seu livro “Dimensão gráfica” (2010) identifica uma tipologia de erros bastante recorrentes no início do processo de aprender a ler e a escrever por vários alunos
Tipologia de erros
| Exemplos recolhidos por alunos
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Incorrecções por inobservância de regras ortográficas de base morfológica
| albofeira” – albufeira “procorar” – procurar “intruduziram” – introduziram
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Incorrecções de acentuação gráfica
| “Viriáto” – Viriato “tecnicas” - técnicas
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Dificuldades na utilização de minúsculas e maiúsculas | “roma” - Roma
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Incorrecções por transcricao da oralidade corrente
| “tanho” - tenho “imbelezar” - embelezar; “ingrançado”- engraçado; “emprutantes” - importantes
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Ao mesmo tempo que analiso esta tipologia, recordo-me de alguns relatórios que me chegaram explicitando alguns tipos de erros com a mesma estrutura que aqui apresento (sem análise do percurso escolar da criança) indicando expressamente que estávamos perante um quadro de dislexia e disortografia.
É importante tomarmos consciência que erros ortográficos não são erros - tipo de uma criança disléxica. Os erros ortográficos consistentes, ou seja, aqueles onde existe sempre a mesma troca de um determinado fonema na mesma palavra (ex: troca entre “ss” por “ç”; “a” por “e”) revelam sim, uma má consolidação do processo de aprendizagem da leitura e escrita. Por outro lado se na leitura (e por conseguinte na escrita) existirem trocas fonológicas em pares mínimos, ou seja, entre fonemas com o mesmo ponto de articulação: “f” - “v”; “p” – “b”; “c” – “g”; “s” – “z” e se estas trocas não são consistentes, com manifestação aleatória independentemente da palavra (tomemos como exemplo crianças que lêem “fida” em vez de “vida” e que escrevem “fida”, mas num outro momento “viga”) não apresentando uma coerência, então aí poderemos estar perante um quadro de dislexia/disortografia (relembrando novamente que não pode haver alterações ao nível da linguagem).
Recordo-me sempre de um colega de trabalho, hoje amigo, que muito admiro, coordenador do Departamento de Ed. Especial de uma escola onde trabalhei, com uma vasta experiência nesta área que me dizia: “Disléxicos, disléxicos mesmo? Conto pelos dedos de uma mão aqueles que encontrei ao longo do meu percurso. Más consolidações da aprendizagem da leitura e escrita, encontrei centenas.” Na escola onde trabalhámos juntos costumávamos fazer um “pequeno jogo”. Ao receber as referenciações de alunos com diagnósticos de dislexia/disortografia procedíamos a uma avaliação pedagógica do aluno. Depois de uma análise do tipo de erros e da sua fluência leitora adivinhavámos o método pelo qual a criança tinha aprendido a ler e escrever. Num segundo momento ao proceder a uma análise processual mais detalhada sobre o percurso escolar do aluno verificávamos que em 99% das vezes tínhamos razão.
Os métodos de aprendizagem de leitura e escrita são reveladores de alguns erros-tipo manifestados pelos alunos. Muitos estudos indicam que os métodos analíticos (que partem da palavra inteira até chegar ao fonema) são aqueles que respeitam a evolução natural do domínio da consciência fonológica numa criança e por isso os mais indicados. Ao realizar jogos de divisão da palavra “em bocadinhos” (pré-escolar) a criança começa a tomar consciência da existência de sílabas na palavra, de que a palavra é formada por sons. Este processo é mais simples para a criança que vai evoluindo ao ponto de tomar consciência dos sons individuais (fonemas) da palavra - consciência fonémica. Crianças que revelam ainda alguma imaturidade poderão manifestar dificuldades nos métodos de leitura e escrita que obriguem a um domínio da consciência fonémica. Um dos exemplos são os métodos sintéticos que partem do fonema para a palavra ( “i” de igreja”; “s” de sapato). O fonema isolado poderá, em muitos casos, ser demasiado abstrato para algumas crianças podendo iniciar-se dificuldades fonológicas neste processo.
No entanto, sabemos que uma criança que tenha tido um bom ambiente para o desenvolvimento linguístico, que não tem alterações ao nível da linguagem e que trabalhou de uma maneira consistente as pré-competências necessárias para aprender a ler e a escrever irá passar por este processo com mais facilidade.
A imaturidade psicolinguística das crianças associado a um trabalho por vezes pouco atento a estas necessidades pode prejudicar o acesso a esta aprendizagem. Um método menos adequado para algumas crianças provoca fragilidades na habilidade para utilizar a língua de uma forma eficiente e isto traduz-se num leitor pouco hábil que muitas vezes é confundido com um leitor disléxico. É de extrema importância um trabalho em torno da consciência fonológica iniciado no pré-escolar. Brincar com as palavras: identificar rimas, som inicial/final de uma palavra, divisão silábica; desenvolver a motricidade. Avaliar e ter em consideração: perceção auditiva, visual, dominância lateral e reconhecimento dessa dominância, esquema corporal; orientação espaciotemporal: identificação em si; identificação do outro e a posição no espaço gráfico são essenciais para iniciar um processo de leitura e escrita. E em muitos casos, se assim se justificar, adiar a sua entrada no 1ºciclo.
Não tenho números para poder comprovar, mas a minha experiência ao longo do meu percuso profissional nas escolas evidencia a existência de uma correlação entre a nova estrutura curricular e o número de relatórios com diagnóstico de dislexia/disortografia/disgrafia/discalculia que têm surgido.
Atualmente, com a mudança de paradigma da estrutura curricular do 1ºciclo, com a inclusão das metas de aprendizagem em cada ano (dentro do 1ºciclo) perdeu-se o tempo e o espaço necessário para um diagnóstico mais aprofundado do ponto de partida das crianças à entrada da escola e criar momentos para a consolidação de duas ferramentas de importância extrema: a leitura e escrita. Todo o processo tem sido feito a um ritmo acelerado não conseguindo dar resposta a quem não acompanha.
A dislexia tem sido encarada como uma guarda-chuva para abranger todas as dificuldades manifestadas na leitura e por conseguinte na escrita. Têm sido colocadas, na mesma gaveta, dislexia; más aquisições no processo de aprendizagem de leitura e escrita; atrasos do desenvolvimento da linguagem e perturbações específicas da linguagem negligenciando muitas vezes o percurso escolar resultando naquilo que considero diagnósticos pouco rigorosos e “fast food”. Mais perigoso do que esta realidade é a rotulação constante destas crianças “Ah, é o disléxico não é? Aquele que troca as letras e não lê bem não é? Portanto é para não contabilizar os erros é isso”? Este é o discurso que oiço inúmeras vezes em várias reuniões e que tem desumanizado e massificado a nossa visão dos alunos. Porque mesmo assumindo que o João e Maria são disléxicos, o João não é a Maria e a Maria não é o João. A intervenção é e tem de ser diferente, não direcionada para a dislexia, mas para o João e para a Maria.
Lamento, enquanto profissional, sentir que na maior parte dos casos tem mais importância o rótulo do que a intervenção. Como se o diagnóstico se encerrasse apenas numa despenalização de erros e numa atitude fatalista como se nada mais pudesse ser feito.