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A poltrona dos avós

por Maria Joana Almeida, em 01.09.23
 

IMG_20230829_190532.jpg

 
Num dos jantares de família deste verão o meu primo deteve-se, por um momento, nas pequenas escadas que levam à sala da antiga casa dos avós, agora por nós remodelada. Disse, de olhos fixos na sala, como era possível termos sido tantos a passar por ali, em simultâneo, nos antigos jantares de família ainda com os avós. Como era possível, no meio de todos os móveis que ditavam uma casa antiga, termos cabido, tantos, mesmo que agora sejamos mais.
 
Na casa dos avós éramos mais do que a poltrona da sala podia, estruturalmente, aguentar. É esta a memória mais sonora da minha infância. A poltrona, que por estar mesmo em frente à televisão, nunca tinha menos de quatro primos que chegavam sequencialmente ou simultaneamente para, aconchegados, entre ombros e pernas, assistir aos desenhos animados matinais. Menos ao domingo. Ao som do sino, que anunciava a hora da missa, a poltrona ficava em descanso por uma hora. Por vezes menos, quando conseguíamos escapar a meio. 
Nos jantares, o avô sentava-se no topo com os filhos e os netos entre a mesa e a poltrona. À hora da sobremesa, por preguiça nossa e amor do avô, era ele quem descascava a fruta que sequencialmente, ou simultaneamente, comíamos entre sorrisos ternos. A avó não nos negava ovos estrelados e batatas fritas que eram, claramente, em maior número do que a ciência permitia, porque o amor dos avós desconhece léxico negativo e não cabe em nenhum artigo científico.
 
Percorríamos muitos quilómetros de bicicleta às vezes um, muitas vezes dois. Saltávamos das rochas para o rio e à noite, na antiga fonte, reforçavamos laços de amizade entre chamadas da avó, que da varanda, relembrava a hora de ir dormir.
 
Neste domingo, entre os antigos baús dos avós, não houve missa, já não há aquela poltrona e há uma nova geração que cresce. Houve mesas cheias no salão como os avós, a mãe e a tia gostavam. Risos, histórias e fruta cortada pelos tios agora avós. Houve abraços e olhares ternos. Houve metáforas que evocaram poltronas de infância entre os primos que agora são pais, aquelas que nos fazem querer sentar no banco corrido para nos queixarmos, entre olhares cúmplices, que não há espaço.
 
Os avós, os pais, os tios e os primos são esta metáfora. São a poltrona que nunca foi pequena demais e que nunca vergou sabendo acolher todos ao mesmo tempo. Não há maior verdade do que a de Coimbra de Matos: só existimos mesmo no amor dos outros e o resto não interessa para mais nada.

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publicado às 14:18


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