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A minha visão sobre Educação. As várias visões sobre Educação e todas as suas (e nossas) variáveis.
O André faz parte do meu círculo de amigos. É pai, político, web developer, músico e um pensador. É parte integrante daqueles que sabem identificar os problemas da nossa sociedade de forma sensata, fundamentada, argumentativa e sem soberba. Dos que não se deixa levar pela rama e deseja ir à raiz do problema. E, principalmente, dos que “sai do sofá” e quer fazer parte da solução tendo um papel ativo e responsável nos vários palcos da sua vida.
Obrigada André por esta entrevista.
“Web developer” é o nome que se dá a um tipo específico de programador que se especializa em desenvolver software para a World Wide Web, que por sua vez é tudo aquilo que pode ser acedido na internet através de um endereço. Principalmente sites, mas não só.
As pessoas estão mais habituadas à expressão Web designer, que é quem trabalha o desenho gráfico e organização de um site, o Web developer, de uma forma muito simplificada é quem desenvolve as funcionalidades e torna o site interactivo.
No início da internet um site era pouco mais que uma coleção de documentos ligados entre si. Tinham texto, imagens, alguns detalhes interactivos e depois links para outros documentos, e por aí em diante. Nos últimos anos aquilo a que se chama um site transformou-se numa coisa progressivamente mais sofisticada, tanto que a fronteira entre o software que corremos dentro browser ou fora dele se desvaneceu. É cada vez mais a normal usar o browser como o principal meio para interagir com os nossos dispositivos. Recebemos e enviamos emails, usamos processadores de texto, folhas de cálculo, editamos imagens, vemos filmes, ouvimos música, fazemos compras, comunicamos uns com os outros, etc, tudo em sites. O trabalho de um Web developer é desenvolver estas ferramentas.
Essa é uma pergunta que tem uma resposta chata, que é “depende”.
Na minha profissão, trabalhar remotamente é perfeitamente possível e é uma coisa que já fazia com alguma regularidade antes do confinamento. Ao contrário de muitas pessoas não foi uma coisa que tivesse que aprender a fazer ou que exigisse adaptação. Para trabalhar só preciso de um computador e de ligação à internet. Isso permite tanto estar num escritório, como em casa, numa biblioteca, num café, etc.
Isso traz alguma autonomia e liberdade para organizar o meu dia. É particularmente útil com crianças pequenas. Há ocasiões e fases de projectos em que ainda é útil (e saudável) estar com os meus colegas, mas muitas vezes as pessoas deslocam-se diariamente de casa para o trabalho e do trabalho para casa, com custos muito elevados (de tempo, financeiros, emocionais e até ambientais) sem que isso traga propriamente alguma vantagem. No fundo é um bocado olhar para o trabalho como uma coisa que se faz e não como um sítio para onde se vai. Quando desligamos esses dois sentidos da palavra “trabalho” conseguimos por exemplo, e tenho períodos em que isso acontece comigo, viver e trabalhar em regiões ou países diferentes.
No entanto isto não quer dizer que seja sempre possível ou desejável trabalhar remotamente. Obviamente a natureza de muitas profissões não é de todo compatível com teletrabalho, mas mesmo quando é não é líquido que seja sempre uma coisa positiva.
O maior perigo é mesmo a fronteira entre o tempo de trabalho e o tempo para todas as outras áreas da vida se esvanecer. Isto pode partir da própria pessoa, seja por necessidade ou dificuldade em separar as coisas, mas também pode nascer de pressão externa. Uma relação laboral desequilibrada é uma relação laboral desequilibrada, seja dentro do mesmo edifício ou não, e trabalhar de casa pode criar a expectativa por parte do empregador de existir uma disponibilidade total e constante.
Os smartphones, chats, emails, etc, já criam um ambiente em que estamos sempre ligados, adicionando a isso o estarmos sempre potencialmente “no escritório” pode-nos fazer regredir e não avançar na nossa relação com o trabalho. Há países onde o “direito a desligar” já é levado muito a sério e acho que, tendo em conta que parece haver um movimento de várias empresas para uma maior aceitação do teletrabalho (provocado muito por esta experiência forçada do confinamento) é preciso garantir que esse movimento é positivo e nos leva enquanto comunidade para um sítio melhor.
Bem, primeiro é preciso desmontar a ideia de “novas tecnologias”. Muito daquilo a que nos referimos já não é propriamente novo. Muitas destas tecnologias já têm décadas. Alguém que tenha 20 anos agora já não conheceu o mundo sem o digital. E mais que isso, acho que o estado eterno de “novidade” contribui para se continuar a olhar para estas coisas como externas ao “mundo real”, quando no fundo são uma parte muito relevante da nossa realidade e têm que ser vistas como tal. Aqui a escola, como algo que nos dá as ferramentas para ler e interpretar o mundo, tem um papel fundamental na unificação destas “realidades”.
Por exemplo, há 10 anos ainda era raro estar ligado à internet na rua, agora assume-se que, por omissão, estamos todos sempre “online” e isto será cada vez mais verdade. Os dispositivos fazem parte da nossa vida, ter um contato progressivo com eles e aprender a usá-los é essencial. E aprender a usá-los não é só aquilo a que se chama normalmente “literacia digital”.
Existe esse primeiro nível básico que a tem a ver com conhecer as ferramentas e saber usá-las numa perspectiva operativa (usar um processador de texto, folha de cálculos, o e-mail, etc), mas existe um outro nível cada vez mais importante que é saber gerir a nossa vida digital. A nossa interação com os outros, mas também com as instituições, seja o estado, um banco, a comunicação social, etc, é feita cada vez mais online (se não for já exclusivamente online) e muitos de nós temos um entendimento muito limitado sobre como flui a informação na internet ou sobre como a podemos aproveitar da melhor forma, ou por outro lado como nos podemos salvaguardar das várias ameaças que existem.
Da mesma forma que ensinamos os nossos filhos a andar na rua, a não falar com estranhos, a olhar para os dois lados antes de atravessar a estrada, também há muito a aprender sobre a nossa presença digital. Saber proteger a nossa privacidade e os nossos dados, saber verificar as fontes de notícias que recebemos antes de as reproduzir nas redes, saber lidar com cyberbullying, saber perceber que a internet é uma nova forma de espaço público e que muito daquilo que fazemos online é potencialmente visível (e registado) por terceiros, etc.
E atenção que não estou a falar de um conhecimento técnico profundo. Por exemplo, não sou partidário de uma corrente que acha que temos que ensinar programação a todas as crianças, não faz sentido. Usando uma metáfora, não temos todos que ser mecânicos para sabermos usar um automóvel de uma forma eficaz, segura e responsável. Nesse sentido parece-me quase absurdo pensar em banir os dispositivos das escolas.
Sei que muitas das preocupações dos pais e professores têm a ver com os dispositivos serem fontes de distração e portais para fora do espaço da escola. Acho que aqui depende muito da idade dos alunos, é obviamente preciso adaptar. No entanto é preciso deixar claro que usar dispositivos nas aulas não quer dizer necessariamente que tenham que ser, ou até que devam ser, os dispositivos pessoais dos miúdos. Aliás, é preciso não esquecer que o acesso a estas “novas tecnologias” é ainda muito desigual. Cerca de um quarto das famílias não têm acesso à internet, portanto quando falamos em usar dispositivos na escola temos que ter em atenção que é preciso garantir que não fica ninguém para trás e que estaremos a diminuir o fosso e não a aumentá-lo.
Por fim, e ainda relacionado com a desigualdade, acho que o digital na escola tem um potencial ainda timidamente explorado para a partilha de conteúdos e materiais de apoio às aulas, ou até de aulas propriamente ditas (como tem acontecido com a telescola, por exemplo). As escolas não são todas iguais, não estão em regiões iguais, não têm bibliotecas iguais e não têm os mesmos recursos disponíveis. Uma das principais vantagens do digital é que assim que um recurso é criado é possível reproduzi-lo infinitamente com custos muito baixos. Fazendo talvez um pouco o paralelo com o tema do teletrabalho, que uma das vantagens que tem é não fazer depender o acesso ao trabalho do sítio em que vivemos, acho que também o digital pode ter um efeito paralelo nas escolas.
É importante não esquecer que o teletrabalho continua a ser trabalho. O sítio onde se trabalha é só um dos aspectos. O trabalho continua a ter problemas muito antigos e a tecnologia aqui pode trazer algumas oportunidades, mas também pode trazer (e já traz) problemas e desafios. Continuamos a trabalhar horas a mais, o nível dos salários em Portugal continua muito baixo, ainda não invertemos o sentido da precarização do trabalho, aliás aqui a tecnologia também tem tido um papel negativo ao criar aquilo a que se chama “gig economy”, que é um nome novo para um desses problemas antigos que referi. Estes continuam a ser os pontos onde é necessário falar de “mudança de paradigma laboral”. Se não existe previsibilidade na relação com o trabalho, ou se não temos rendimentos suficientes para assegurar o essencial nossa vida, o local onde se trabalha passa para um plano secundário.
Relativamente ao teletrabalho em particular já falei em cima do problema do “direito a desligar”, acho que esse é um dos desafios, e é algo com que já temos que lidar há algum tempo, mas há mais desafios.
Outro desafio está relacionado com os custos do espaço e do equipamento necessário para trabalhar. Um trabalhador por conta de outrem quando se desloca para o escritório da empresa não é esperado que leve o próprio computador, ou que leve a cadeira onde se vai sentar. Em teletrabalho as coisas podem não ser tão claras. Há o perigo do esvanecimento da fronteira entre o trabalhador por conta de outrem e o profissional liberal, o que cria um desequilíbrio de responsabilidade e de encargos entre o trabalhador e o empregador.
Depois, e partindo do princípio que existe uma relação de trabalho saudável e justa, existem desafios mais operativos com o teletrabalho. Trabalhar sozinho e estar ao mesmo tempo integrado numa equipa exige organização e processos adaptados a essa realidade. Diria mesmo que o mais difícil não é o trabalho remoto, é a colaboração remota que é um desafio. É preciso comunicar com as outras pessoas de uma forma eficiente, é preciso planear e é preciso ter uma forma simples de acompanhar o progresso da equipa. Acho que não é por acaso que a minha área [a programação] está tão bem adaptada a esta realidade. Por um lado ajuda muito ter destreza na utilização das ferramentas digitais. Por outro lado a natureza sistemática do trabalho do programador faz com que seja possível dividir os projectos em partes muito pequenas, o que por sua vez permite planear cada semana e cada dia com alguma precisão. Isso também torna mais fácil dividir o trabalho pelas equipas e permite a autonomia de cada um durante grandes períodos.
Para terminar acho que é importante dizer que a escolha entre usar ou não o teletrabalho não tem que ser uma escolha binária. Existem várias configurações possíveis, como estar fora alguns dias da semana, meio dia, ou alternar por temporadas. Isso pode permitir usufruir de algumas vantagens do trabalho remoto mitigando as desvantagens.
Não acho que o teletrabalho possa configurar propriamente um novo paradigma. Tenho visto reacções que vão da euforia à exasperação, e como acontece normalmente a realidade estará algures no meio. É mais uma ferramenta que é bom que esteja à disposição de quem quer ou precisa, mas sempre sem esquecer que o trabalho tem outros desafios. E é especialmente importante não substituir um dogma por outro dogma.
Tentando resumir numa frase, acho que a escola de que precisamos é precisamente uma que abrace a ideia de que não sabemos para onde caminhamos.
A minha passagem pela escola, e não vejo ainda diferenças substanciais na escola das minhas filhas, foi baseada em duas ideias principais. Uma é uma ideia de previsibilidade do futuro, de que existe uma sequência linear de etapas para superar, e que se forem superadas sem grandes percalços o futuro está garantido. A outra é uma ideia de uniformização, que resulta de uma mentalidade industrial, que é obcecada em transformar tudo em indicadores aferíveis, comparáveis e reproduzíveis, mas que deixa pouco espaço para a diversidade de interesses, diversidade de competências e diversidade de percursos.
Em relação à ideia de previsibilidade parece-me claro que se há coisa com que podemos contar é com a imprevisibilidade do futuro. Não é possível saber que competências técnicas serão importantes daqui a 20 anos. Cada vez mais profissões são automatizadas ou mudam radicalmente de natureza à medida que o tempo passa, e tudo indica que isso continuará a acontecer mais e mais depressa. Nesse sentido parece-me anacrónico insistir num modelo de ensino baseado em ciclos de memorização/avaliação que vão sucessivamente afunilando com vista a uma especialização qualquer que não sabemos sequer se vai existir. Na minha opinião é preciso desenvolver competências mais transversais, dar ferramentas para ler a realidade, para a interpretar, e para a alterar. É preciso estimular a curiosidade, promover a criatividade e isso consegue-se não estigmatizando o erro. Na minha experiência a única forma de inovar é já ter experimentado e errado vezes suficientes até se encontrar qualquer coisa nova. A única forma de não errar é repetir só o que já se conhece.
Sobre a ideia de uniformização, a forma como o sistema está desenhado assemelha-se uma escada, como vários degraus e patamares, em que no topo está o curso superior. É uma forma redutora e perigosa de olhar para o potencial de cada um de nós e um sistema que cria a ideia dos que “ficam pelo caminho”, como se não tivessem capacidade para continuar a subir, ou simplesmente caíssem da escada. Ora aquilo de que precisamos é exactamente do contrário, de diversidade e de interseção de caminhos. as comunidades mais diversas são por norma as mais saudáveis e as mais resilientes.
Sem uma alteração profunda de modelo arriscamo-nos a desaproveitar o nosso potencial individual e colectivo, e dados os desafios colectivos que temos pela frente acho que esse é um risco que não podemos correr. É urgente fomentar duas coisas que parecem contraditórias, mas não são. A autonomia e a capacidade de colaborar. Colaborar não só no sentido de “co-laborar” que aponta para um “trabalhar/laborar” em conjunto, mas também no sentido tomar decisões em conjunto, de saber ouvir, debater, construir e sustentar argumentos, encontrar soluções, sejam elas consensos ou compromissos. Uma coisa que em retrospectiva me choca na minha passagem pela escola, e de que me apercebi muito tarde, foi que em nenhuma outra altura da minha vida passei tanto tempo numa sala com pelos menos outras 20 pessoas da minha idade, e no entanto a comunicação era bidirecional entre o professor e cada um dos alunos individualmente em vez de ser uma comunicação em rede. Por absurdo é quase como se ter vários alunos na mesma sala fosse apenas a consequência de uma qualquer optimização de recursos e não um recurso (valiosíssimo) em si.
Todos nós, tanto individualmente, como em Portugal, como enquanto humanidade, temos muitos desafios e ameaças pela frente que vamos ter que saber encarar e, com alguma sorte, transformar em oportunidades. Mas para isso temos que conseguir usar melhor o potencial de cada um de nós e de todos. Para isso não basta fazer um debate que se fique pelo encontro entre “novas tecnologias” e o sistema de ensino que temos agora, é preciso mesmo ir à raiz do problema e perguntar o que queremos da escola.