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Uma lufada de normalidade

por Maria Joana Almeida, em 29.03.20

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Ontem tive de pegar no carro. Senti-me, por momentos, Joana outra vez. Rádio sintonizada na SBSR, aquele som que me acompanha nas viagens para o trabalho diárias. Senti laivos de liberdade. Só tinha de ir até à Alameda, mas senti como se tivesse feito uma viagem para outro país. Tive um acesso de normalidade que me preencheu o resto do dia. Entre o medo e otimismo, prefiro, seguramente, o segundo.

 

A normalidade é, por estes dias, escassa. É feita, em momentos fugazes ou em alternativas que foram recriadas e inventadas para este momento. E se há competência que nos carateriza enquanto povo, é esta imediata capacidade de recriação quase instantânea e de rápido equilíbrio interno.

 

Por agora, nesta quarentena ou isolamento profilático, muitos trabalhos puderam ficar em teletrabalho, as compras ficam online, há festivais dentro de casa porque a time out é agora time in.

Neste processo atípico, as aulas também continuam. Professores e alunos, através de ferramentas, inúmeras vezes realçadas como indispensáveis numa escola que se quer do Sec XXI, mantêm o seu trabalho. As vozes dissonantes e mais inflamáveis fizeram-se rapidamente ouvir. Entre críticas às plataformas utilizadas como sendo pouco práticas a Encarregados de Educação que se queixam de não conseguir acompanhar todas as tarefas exigidas em casa.

E aqui, mesmo no centro do tsunami, há questões que serão sempre mais imunes a vírus. Apontar as nossas ansiedades e frustrações a uma entidade ou a outro elemento.

 

Manter uma rotina escolar, ou qualquer outra rotina, dentro do possível, é poder atribuir alguma normalidade aos nossos dias. É manter alguma sanidade mental, essencialmente se percebermos exactamente isto. É uma questão, acima de tudo, de sair do medo e manter-me à tona. Não acredito, que no meio deste processo se queira, ou se possa exigir mais.

Atiramos pedras mentais e verbais a professores, hoje dizemos, por passarmos 24 horas com os nossos filhos em casa, o quão importantes são. Criticamos médicos e enfermeiros mas batemos palmas há uns dias atrás à janela. Reinventamo-nos segundo os tempos.

 

Não é o tempo de atirar pedras, não é o tempo de exigir mais dos professores, ou exigir mais dos pais, exigir mais do vizinho, exigir mais do governo ou até mesmo de nós. Somos nada perante uma força invisível. E a única força motriz no meio do nada são as nossas relações, aquelas que constroem. 

 

Quando isto acabar é olhar para trás e manter a fotografia mental para encarar o futuro. Até lá resta-nos estes laivos de normalidade que são os nossos ventiladores sem número contado. Resta-nos partilhar os nossos silêncios naquela Praça de São Pedro com Francisco.

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publicado às 18:14

Nunca o mundo precisou tanto de uma Aldeia

por Maria Joana Almeida, em 16.03.20

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A frase: “É preciso uma aldeia para criar uma criança.” foi perdendo força e sentido pelas mudanças, inevitáveis, ao longo dos anos. As aldeias são agora cidades que têm outros ritmos e prioridades impostas que dificultam um sentido de comunidade que permita um maior olhar e cuidar do próximo.

 

A atualidade reveste-se de um panorama muito desolador. Imagino que a primeira curiosidade (legítima) quando acordamos de manhã é saber o número de infetados com Covid 19, em Portugal e no Mundo. Não é uma curiosidade mórbida, apenas um ato que nos permite algum controlo, com um pé dentro e outro fora da realidade, fora deste isolamento profilático ou quarentena.

 

O que era tão distante tornou-se numa realidade ao lado de casa. Aquilo que poderia parecer, à partida, ficar confinado a um espaço, galopou fronteiras, invisivelmente, deixando um rasto de caos pessoal, social e económico.

Neste momento de total reorganização de mentalidades há quem não ceda ao pânico, ao medo, mas também quem não ceda ao bom senso. A verdade é que não conhecemos isto. Não reconhecemos este espaço em que vivemos, uma espécie de ensaio sobre a cegueira, aqui, à porta de nossa casa. No entanto, no meio de tantos erros que podemos apontar aos dirigentes governamentais, o momento é absolutamente apartidário, e é também um momento de construção, mais do que crítica gratuita, um momento de humanidade, de comunidade e introspeção que nos passa habitualmente ao lado, a reboque do passo apressado diário. E é quando tudo pára que deve ser só isto que resta.

 

É por isso que para cada pessoa que leva amplamente mais do que a sua despensa pode armazenar, que existem 10 que levam as compras essenciais e em conta aos seus vizinhos que se encontram limitados e nos grupos de risco. Por cada pessoa que vai a um bar no Cais do Sodré, existem 10 que utilizam os seus alojamentos locais para que profissionais de saúde possam fazer o seu corajoso trabalho (não há melhores palmas do que estas). Por cada pessoa que assobia para o lado existem 10 médicos de outras áreas que se disponibilizam, aos seus amigos e conhecidos, publicamente para tirarem dúvidas de modo a não entupir a linha saúde 24 e por cada pessoa que critica cegamente todas as medidas tomadas publicamente existem inúmeras que reinventam ideias, iniciativas num total processo de construção para melhor lidarmos com este isolamento. E por cada notícia falsa, existem cadeias criadas para repor a verdade.

 

Não temos por hábito falhar nestes desafios da reinvenção e adaptação. É algo que também nos carateriza. É também tempo de pegar na frase: “É o país que temos” e resgata-la para este momento dando-lhe a volta ao sentido a que habitualmente é apregoada. Portugal não é perfeito, mas tenho a certeza que sabe ser a aldeia comunitária sempre que necessita.

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publicado às 22:18


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