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A minha visão sobre Educação. As várias visões sobre Educação e todas as suas (e nossas) variáveis.
"Ângelo Fernandes é o fundador e presidente da Quebrar o Silêncio – a primeira associação portuguesa de apoio especializado a homens sobreviventes de violência e abuso sexual. Reivindicador dos direitos humanos, igualdade de género e feminismo, trabalha no sentido de desconstruir os valores tradicionais da masculinidade e na promoção de masculinidades cuidadoras e transformativas. Defende a participação ativa dos homens e rapazes na promoção e conquista de uma sociedade equitativa onde as mulheres e homens gozem de plena igualdade de direitos e oportunidades."
O Ângelo foi meu colega de curso. Empenhado, bem disposto e positivo, tem neste momento uma missão nobre entre mãos que vale muito a pena conhecer.
Obrigada Ângelo.
1 - Ângelo, criaste há pouco tempo a Associação Quebrar o Silêncio que tem como missão apoiar homens sobreviventes vítimas de abuso sexual. Poderia encontrar respostas na Internet, em algumas entrevistas que foste dando, mas gostaria que me dissesses qual o momento em que decidiste avançar com este projeto e as principais motivações?
Antes da Quebrar o Silêncio não havia nenhuma associação com uma resposta e serviços de apoio especializados para homens sobreviventes de abuso sexual. Era uma necessidade que há muito necessitava de ser colmatada em Portugal. Foi aí que, com o apoio de pessoas amigas, fundámos a Quebrar o Silêncio.
Sobre as motivações que perguntas, desde cedo que discutimos várias vezes sobre tornarmos pública a minha história pessoal. Sabíamos que era uma opção para promover e dar visibilidade a este assunto, e que era também uma oportunidade de chegar a outros homens sobreviventes. A identificação é fundamental para que os homens sobreviventes possam começar a sentir que há um espaço que os recebe com segurança, que vão ser ouvidos e que as suas histórias vão ser validadas. E constatamos isso quando vários homens referem a importância de terem lido o meu testemunho antes de nos procurarem.
2 - É comum associar estes crimes a mulheres. Se realizássemos um “voxpop” conseguiríamos perceber que os homens são poucas vezes (ou quase nunca) apontados como vítimas de abuso sexual. Como explicas esta realidade e como encaras este panorama atualmente?
A verdade é que nem toda a gente acredita que os homens e rapazes possam ser abusados sexualmente. E se falarmos de violência doméstica, física e sexual, vários estudos indicam que é o homem que comete essa violência, principalmente contra mulheres e raparigas, mas também contra outros homens e rapazes. Esta é a realidade. No entanto, esta realidade também nos diz que os homens e rapazes são afetados pela violência sexual. Se sabemos que 1 em cada 3 mulheres é vítima de abuso sexual, sabemos também que 1 em cada 6 homens também o é.
Um dos obstáculos ao reconhecimento dessa realidade é o facto de a nossa sociedade continuar a ser regida por normas de género muito rígidas, os ditos estereótipos de género. E essas normas dizem que o homem tem de ser forte e saber proteger-se, e que “um homem a sério” ou “homem que é homem” jamais poderá ser vítima. São ideias que promovem o silenciamento dos homens sobreviventes e que impossibilita que possam sentir que podem procurar apoio. Não é por acaso que apenas 16% dos homens sobreviventes considera que foi vítima de abuso sexual.
É preciso fazer um trabalho que esteja coordenado entre diferentes dimensões, seja na educação, nas respostas de apoio ou na lei. Por exemplo, no atual Plano de Ação para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e à Violência Doméstica 2018-2021 reconhece-se a "intervenção junto de homens vítimas de VD e de violência e abuso sexual." Esta medida, que prevê a "especialização da intervenção para outros tipos de violência na CI e junto de grupos vulneráveis", é um reconhecimento histórico para nós e um marco para ser lembrado no futuro.
3 - Os números são (nem sempre) mas nestes casos importantes para percebermos a dimensão do problema. Quantas pessoas já contactaram a Associação deste que foi fundada? E quais os números reais de pessoas vítimas de abuso sexual no nosso país atualmente?
É impossível sabermos os números reais de vítimas de abuso sexual no nosso país. Sabemos que em Portugal os crimes sexuais apresentam a maior disparidade entre os crimes e as denúncias realizadas, fenómeno este conhecido como Cifras Negras. Portanto, quando temos acesso a ferramentas como o RASI, Relatório Anual de Segurança Interna, é preciso termos uma visão e uma interpretação crítica dos números e estatísticas apresentadas. Sabemos, por exemplo, que no Reino Unido apenas 3,9% dos homens é que denuncia o seu caso. E estamos a falar de uma realidade onde existem várias respostas de apoio para homens e mulheres sobreviventes com décadas e décadas de trabalho feito nestas áreas.
No ano passado, em 2017, registámos na associação 74 pedidos de apoio, nem todos eles de homens sobreviventes; por vezes, há mulheres sobreviventes que nos procuram também, e que reencaminhamos para entidades parceiras, e também temos familiares que procuram apoio. Este ano até ao momento, leia-se final de maio, registámos 70 pedidos. A procura pelos serviços da Quebrar o Silêncio tem aumentado e podemos interpretar este aumento como uma resposta ao trabalho que fazemos pela visibilidade destes temas e dos serviços.
4 - O movimento “Metoo” entre outros, foi de alguma forma pioneiro (numa determinada Indústria é certo) em abanar estruturas e “descongelar” um determinado tipo de comportamentos que passavam muitas vezes pelos pingos da chuva sendo “aceites”. Qual a tua opinião sobre este movimento e se consideras que pode ter ao mesmo tempo um lado perverso de instrumentalização de poderes?
Movimentos como o #MeToo e o #TimeIsUp são fundamentais. Temos assistido a mulheres (e alguns homens também) que têm conseguido falar publicamente e expor situações que têm deixado muita gente incrédula, mas também resistente a este tipo de situações. Com tanto mediatismo, temas como o abuso sexual e o assédio sexual têm estado no centro de várias discussões e conversas, e de certo modo foram sendo (re)introduzidas no nosso quotidiano — e isso é algo positivo. Com estes movimentos é preciso tomar estas oportunidades para informar e educar rigorosamente, isto é, não podemos apenas discutir caso a caso o que tem acontecido; é importante que o público em geral tome conhecimento em que contexto o abuso e o assédio tomam lugar nestes casos, em que moldes, quem são estes abusadores, a que estratégias recorrem, entre outras questões. É fundamental que este tipo de educação aconteça também. Por exemplo, por vezes há quem confunda assédio sexual com brincadeira, flirt ou até mesmo sedução, e é preciso clarificar de forma rigorosa e assertiva que assédio sexual não é nada disso. Do mesmo modo que também é preciso ir desconstruindo a “rape culture” e a cultura de responsabilização das vítimas. Este é uma linha de pensamento muito presente nos comentários a que temos acesso e também no trabalho que fazemos nas escolas. Há muitas ideias erradas, como a crença de que a vítima pode provocar, “meter-se a jeito” e que a vítima pode ser co-responsável pelo abuso. Estas ideias têm de ser desmistificadas e depois atualizadas. Movimentos como o #MeToo podem proporcionar estes momentos de aprendizagem.
5 - Sei que a Associação tem estado muito presente em escolas como forma de sensibilização para a sua missão. Como têm sido recebidos e que tipo de questões são normalmente colocadas pelos nossos jovens?
Para nós trabalhar com as escolas para a sensibilização e informação de rapazes e raparigas é fundamental, e foi logo desde início um dos nossos objetivos. O trabalho que fazemos nas escolas é também o nosso contributo para a prevenção do abuso sexual de rapazes e raparigas.
A aceitação por parte dos e das estudantes é muito interessante. Normalmente, prestam muita atenção ao que dizemos e aos números, definições e exemplos que apresentamos. O que registamos é que existem ainda muitas ideias e questões que vêm de uma educação assente nos papéis tradicionais da masculinidade e feminilidade. Observamos que há várias crenças que continuam enraizadas, como a de que um rapaz não pode chorar, que o papel do homem é sustentar a família, que o lugar da mulher é em casa, que os homens e rapazes não podem ser abusados sexualmente, que a responsabilidade do abuso sexual é da vítima (o que é mais premente no caso das vítimas mulheres). Também encontramos jovens com informações mais “atualizadas” sobre violência sexual e igualdade de género, mas não nos parece ser de todo a maioria. Por exemplo, muitos jovens identificam que abuso sexual não se limita apenas à penetração e violação, e que há formas de abuso que não incluem sequer contacto físico. É bom ver que existe já esta consciência junto das e dos jovens.
Este é um trabalho que é importante ser feito junto das escolas. Por vezes pode ser difícil porque parece não haver mudança, mas também é necessário reconhecer que o impacto de alguém que apresenta ideias diferentes e que pode aumentar o espectro de algumas noções mais restritas, pode ser já, só por si, a semente para uma mudança positiva.
“Hoje pedimos aos nossos alunos que, quando entram na sala desliguem, saiam do nosso tempo e entrem na Idade Média" foi uma das frases de João Couvaneiro no último encontro sobre Educação que estive presente.
É uma frase bastante sugestiva sobre o uso de tecnologias em sala de aula. Embora seja cada vez mais comum a utilização de tecnologias nas escolas (não falo só dos computadores, quadros interativos e livros digitais mas também na utilização de telemóveis como atividade pedagógica e de ipads ao invés de caderno e caneta) sabemos que existem alguns profissionais da velha guarda que não vêem como uma mais-valia a utilização de algumas tecnologias resistindo à sua utilização apelidando-as de desnecessárias, distratoras e contraproducentes para a atenção e concentração necessária que uma aula exige. A verdade é que, não colocando de parte em nenhum momento as competências importantes por detrás da continuação da utilização do papel, livros e caneta e lápis, não é de todo possível negar a evolução constante das novas tecnologias (lembremo-nos que estamos na era em que é possível imprimir casas) e que negá-las, ao não serem incorporadas na dimensão escola renegando-as para alguns momentos e como disciplinas de 45minutos é, numa metáfora pertinente, chamar para dentro da sala de aula uma nova idade média que não tem continuação nem reflexo nas nossas sociedades, nem nos constantes novos desafios que o futuro trará.
A propósito deste tema, o jornal Público publicou recentemente uma notícia onde podemos ler: “Uma previsão do Fórum Económico Mundial diz que quatro em cada cinco crianças que entram hoje na escola terão empregos que ainda não existem.” a primeira pergunta (e bastante pertinente) do meu sogro quando leu este pequeno parágrafo foi: “Como se preparam crianças para empregos que não existem? O que trabalham?” Pensei imediatamente na necessidade de trabalhar o pensamento crítico por ser, na minha perspetiva, a competência mais importante e transversal não só para o mundo laboral, mas para a nossa capacidade de ultrapassar dificuldades em geral. A notícia continuava: “Não sendo possível prepara-los com base num currículo para um conteúdo que nem sequer existe, como se faz? Trabalhando-lhes a resiliência, o pensamento crítico, a capacidade de organizar, construir e discernir. “
É nesta resposta que reside aquilo que de mais importante a escola tem de oferecer e uma das suas maiores competências e desafio atual.
A capacidade do ser humano para produzir e reinventar parece ser ilimitada resultando em infindáveis “possibilidades tecnológicas” e tem de ser papel central da escola responder e acompanhar este desafio. Por um lado preparar os alunos para esta realidade ao mesmo tempo que ajuda a refletir sobre as duas faces da mesma moeda, relembrando de onde vimos, o que evoluímos e o que pretendemos para o nosso futuro. Um futuro que será escassamente feito de papel, caneta e lápis mas sim através de constantes novas tecnologias que vão redesenhar o nosso mundo com um novo tipo de comunicação e desafios.
Notícia Público: (https://www.publico.pt/2018/05/14/sociedade/noticia/gulbenkian-tem-25-milhoes-de-euros-para-chegar-as-organizacoes-do-portugal-real-1829662)